Recentes casos da política brasileira, como a intenção de privatizar a Casa da Moeda – empresa que imprime as cédulas de dinheiro -, justificada pela “queda do uso de papel-moeda” e pelos gastos com sua produção, além da recente busca da Polícia Federal, que encontrou mais de R$51 milhões em notas de real e dólar, num apartamento ligado ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, tem feito as autoridades questionarem a necessidade de circulação de dinheiro vivo no país.
Mesmo com a multiplicação das máquinas de cartão magnético e o surgimento de novas tecnologias de pagamento, o dinheiro em espécie continua sendo a principal forma de realizar transações no Brasil. Segundo os dados mais recentes do Banco Central (2013), 78% da população prefere utilizá-lo nas trocas comerciais, enquanto que 57% dessas operações são realizadas com cédulas e moedas.
Os números, contudo, revelam uma queda e uma heterogeneidade nesse uso. No levantamento anterior (2010), 67% das operações se realizaram em dinheiro vivo. Por outro lado, o seu uso é inconstante por parte da população, variando conforme o valor do pagamento, produto, serviço obtido e classe social. Quando se trata de gastos indispensáveis e regulares, como compras pequenas no mercado, contas de consumo e aluguel, o brasileiro prefere pagar em dinheiro; já quando sai para comprar roupas, calçados e eletrodomésticos, utiliza outros meios de pagamento. Considerando apenas o valor, os cartões magnéticos já efetuam a maioria das compras acima de R$ 50,00.
Outro fenômeno observado é o comportamento quanto à posição social e etária do comprador. Independentemente do valor ou tipo da compra, as classes A e B tendem a utilizar mais os cartões magnéticos do que a população em geral. Os jovens e universitários também tendem a utilizar mais os cartões, em detrimento das cédulas e moedas. Em uma das gráficas copiadoras da Escola Politécnica, por exemplo, a despeito do baixo valor agregado dos produtos, a maioria do estudantes não paga com dinheiro.
“Cerca de 80% das nossas vendas são pagas com cartão”, afirma a proprietária da gráfica, Cristina Costa. “Não restringimos mais valores mínimos, seja cinco, dois reais, ou 80 centavos. Embora pessoalmente eu prefira receber em dinheiro, pela ausência das taxas, a tecnologia é algo que não tem como fugir. Não dá para mudar os hábitos dos estudantes”, conta.
Curiosamente, o brasileiro não costuma levar muito dinheiro nas bolsas e carteiras. Embora na média os valores levados variem entre R$50,00 e R$100,00, cerca de 30% da população prefere levar quantidades inferiores a R$10,00.
O meio circulante nacional – que corresponde ao total de cédulas e moedas em poder do público e da rede bancária – equivale a aproximadamente R$212 bilhões. Para o ano vigente, a estimativa de produção de cédulas é de 980 milhões de unidades, considerando todos os valores. Atualmente, o governo paga R$284,83 por cada milheiro de notas.
A extinção do dinheiro vivo
Em diversas partes do mundo, a manutenção do papel-moeda vem sendo questionada, por uma série de fatores, como a segurança do portador, que está sujeito a assaltos, o anacronismo de se gastar com a emissão de cédulas e moedas e a facilidade de se cometer atividades ilegais, como esquemas de corrupção, caixa dois e lavagem de dinheiro, em virtude do anonimato que o dinheiro vivo proporciona para ambos, comprador e vendedor. No Brasil, os montantes de dinheiro ilícito que vêm sendo descobertos trouxeram à tona uma proposta de digitalizar todo o dinheiro do país.
De autoria do deputado federal Reginaldo Lopes (PT/MG), o projeto de lei 48/2015 determina a “extinção do uso, produção e circulação de dinheiro em espécie e a digitalização completa de todas as transações financeiras”. Em sua justificativa, Lopes argumenta que a tecnologia já proporciona os meios para extinguir o dinheiro, o que possibilitaria inúmeros benefícios ao país, como a eliminação de gastos e o rastreamento de todas as transações financeiras, impedindo assim assaltos, sequestros e diversas práticas violentas.
Para o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), Rodrigo de Losso Bueno, esse tipo de posição é um tanto radical. “O dinheiro pode ser substituído por outros meios, mas existem atividades que preferem o dinheiro, em decorrência dos custos de cada operação. É uma questão de saber balancear as peculiaridades de cada situação. Hoje, as taxas das operadoras de cartão são repassadas para o consumidor, tornando o produto mais caro. No futuro, talvez, com a difusão dos cartões, esse custo pode ser menor”, afirma.
Por outro lado, embora reconheça que o dinheiro vivo facilita práticas criminosas, Bueno destaca a relação custo-benefício de uma possível extinção das cédulas. “Evidentemente, quando se age no ilícito, o papel-moeda é melhor do que uma transação eletrônica, pela dificuldade em ser rastreado”, admite. “Contudo, quem quer fazer o ilícito vai achar uma alternativa, como fraudes eletrônicas ou moedas paralelas, mesmo que demore um pouco. Existe um benefício parcial na tentativa de inibir as atividades ilegais; porém, com um custo muito grande, já que muitos pequenos negócios não possuem acesso a crédito e precisam da moeda para suas vendas”, alerta.
O especialista também destaca uma das preocupações do Fundo Monetário Internacional (FMI), que é a de que uma implantação unilateral do fim do papel-moeda seria absolutamente ineficaz. “As pessoas vão encontrar uma maneira de usar algum tipo de moeda de troca, que pode ser algo extraoficial ou até mesmo moedas estrangeiras. Se o Brasil aprovar esse projeto de lei, vai começar a ‘chover dólares’ no mercado paralelo do país”.
O dinheiro no mundo
De acordo com dados do Banco de Compensações Internacionais, a média mundial de uso do dinheiro em espécie é bem maior do que no Brasil: cerca de 85% das transações são efetivadas em papel-moeda, representando 60% do valor total. Curiosamente, não existe a correlação do uso de meios digitais com o padrão de vida de cada país.
No norte da Europa, por exemplo, o dinheiro está entrando em desuso. A Dinamarca pretende retirar o dinheiro físico de meios como lojas de roupas, restaurantes e postos de gasolina – e, a longo prazo, extingui-lo. Na Suécia, por outro lado, até mesmo bancos e igrejas estão se adaptando aos novos tempos: muitas agências sequer aceitam depósitos em espécie, enquanto boa parte dos templos recebe tradicionais doações, como o dízimo, por aplicativos de celular.
Em outras localidades desenvolvidas, como a Zona do Euro e o Japão, não se observa o mesmo. Nesses locais, o uso do dinheiro em papel é predominante, o que pode ser medido pelo total de dinheiro vivo em circulação: respectivamente, 10% e 20% do Produto Interno Bruto (PIB) da região, valor alto se comparado aos 4% do Brasil e aos 2% da Suécia.
No Quênia, país africano com IDH médio, mais da metade da população adulta possui aplicativos para pagamentos via celular. A China também é um exemplo do uso dessa nova tecnologia – quase ignorando os cartões magnéticos, 60% das transações no gigante asiático são realizadas digitalmente.
“Mesmo não vivendo em uma nação completamente desenvolvida, boa parte dos brasileiros utiliza os cartões magnéticos por uma questão cultural”, argumenta Bueno. “Isso talvez ocorra em razão de um passado inflacionário, quando ‘carregar dinheiro nas mãos era a mesma coisa que carregar fogo’ ”.
Outra tendência que vem surgindo nos últimos anos é a utilização de moedas digitais ou criptomoedas como meio de pagamentos, simbolizadas, principalmente, pelo bitcoin. Esse tipo de moeda, que já foi responsável pela compra de um imóvel nos EUA, vem recebendo investimentos pesados, embora ainda seja considerada relativamente insegura. A Coreia do Norte, por exemplo, vem sendo acusada de roubar virtualmente quantidades da moeda, visando a driblar as cada vez mais pesadas sanções econômicas que recebe, por parte das potências mundiais.
“Não devemos enxergar de maneira conspiratória nenhum novo meio de pagamento que surge. Eles são apenas diferentes e proporcionarão novas maneiras de trabalhar ilegalmente. O importante, entretanto, é estimular a concorrência entre as provedoras de serviços financeiros digitais, a fim de buscar uma evolução na qualidade do que é oferecido e evitar a excessiva concentração de meios e de renda em determinadas instituições”, finaliza Bueno.
Por João Victor Escovar
Reprodução do Jornal do Campus: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2017/09/dinheiro-em-especie-ainda-tem-forca/
Publicado em 26 de setembro de 2017