Eliot SteinDa BBC Travel
- 19 janeiro 2020
O dólar americano é a moeda mais usada no mundo. É o padrão-ouro não oficial. Segundo o Fundo Monetário Internacional, 62% das reservas financeiras do planeta são mantidas em dólares — mais do que o dobro do total de reservas estrangeiras em euros (Europa), ienes (Japão) e renminbi (China) somados. Trinta e uma nações o adotaram como moeda oficial ou usam o mesmo nome para suas moedas; mais de 66 países vinculam o valor de suas moedas a ele; e agora é aceito em lugares tão distantes quanto a Coreia do Norte, Sibéria e estações de pesquisa no Polo Norte.
Um lugar onde o dólar não é aceito, porém, é a pequena cidade checa de Jáchymov — o que é irônico, porque foi nela, escondido nas montanhas arborizadas, que o dólar surgiu, 500 anos atrás, em janeiro de 1520. Mas quando puxei uma nota de um dólar com o rosto de George Washington da minha carteira no museu da Casa da Moeda de Jáchymov, o mesmo local onde os primeiros ancestrais do dólar foram cunhados, o professor Jan Francovič sorriu e me deteve.
“Não vejo uma nota dessas há muito tempo”, disse ele, chamando dois colegas. “Em Jáchymov, aceitamos apenas coroas, euros ou, às vezes, rublos russos. Você é o primeiro americano a vir aqui em mais de três anos.”
Bem-vindo a Jáchymov: uma cidade sonolenta de 2.700 pessoas, perto da fronteira tcheco-alemã, que é a casa do dólar e um lugar onde não há nenhum dólar. Provavelmente, você nunca ouviu falar da cidade. Você provavelmente não sabia que ela se tornou Patrimônio Mundial da Unesco. E você provavelmente nunca soube que a moeda que alimenta o “mundo livre” se originou nesta cidade que ainda sofre após o colapso do comunismo e que tem mais bordéis do que bancos.
De fato, você pode passar um dia subindo e descendo a rua principal de Jáchymov, passando por seus edifícios góticos e renascentistas abandonados, pelo opulento aglomerado de spas na base do vale e ir até seu castelo do século 16 sem nunca perceber que era o berço do dólar.
“Como você soube? Não há sinais disso em lugar nenhum — a maioria das pessoas que moram aqui nem sabe!”, disse Michal Urban, diretor de uma ONG local e um dos autores da indicação da cidade para a Unesco, enquanto descíamos uma escada escura e entrávamos no porão da Casa da Moeda. “Nenhuma outra cidade mineira do mundo teve uma influência tão grande quanto Jáchymov, mas esquecemos nossa história.”
Muito antes de Jáchymov existir, as montanhas ondulantes que separavam as regiões que hoje são Boêmia e a Saxônia eram governadas por lobos e ursos que vagavam por suas florestas virgens. Quando grandes quantidades de prata foram descobertas em 1516, o nobre empresário local, o conde Hieronymus Schlick, batizou a área de Joachimsthal (“vale de Joachim”) em homenagem ao avô de Jesus, o santo padroeiro dos mineiros.
“Na época, a Europa era um continente de cidades-Estado com governantes locais disputando o poder”, explicou o historiador local Jaroslav Ochec. “Sem uma unidade monetária padrão entre eles, uma das maneiras mais eficazes de os governantes afirmarem seu controle era cunhar sua própria moeda, e foi o que Schlick fez.”
A autoridade boêmia que governava na época concedeu oficialmente a Schlick permissão para cunhar suas moedas de prata em 9 de janeiro de 1520. O conde estampou uma imagem de Joachim na frente, o leão boêmio no verso e nomeou sua nova moeda “Joachimsthalers” — que logo foi reduzida para “Thalers”.
Numa época em que o conteúdo metálico das moedas era o único determinante do valor, Schlick fazia duas coisas inteligentes para garantir a propagação e a sobrevivência da moeda. Primeiro, ele fazia o thaler do mesmo peso e diâmetro da moeda de 29,2 g Guldengroschen, usada em grande parte da Europa central, o que facilitou a aceitação pelos reinos vizinhos. E, principalmente, ele cunhou o maior número de moedas que o mundo já tinha visto.
Em apenas 10 anos, Joachimsthal se transformou: de um povoado de 1.050 pessoas no maior centro de mineração da Europa — um movimentado centro de 18.000 pessoas com 1.000 minas de prata que empregavam 8.000 mineiros.
Em 1533, Joachimsthal era a segunda maior cidade da Boêmia, depois de Praga, e em meados do século 16, Urban calcula que cerca de 12 milhões de thalers cunhados nessas montanhas haviam se espalhado por toda a Europa — muito mais do que qualquer outra moeda do continente.
As reservas de prata de Joachimsthal logo secaram, mas em 1566, o thaler era tão conhecido em toda a Europa que, quando o Sacro Império Romano procurou estabelecer um padrão de tamanho e teor de prata para as muitas moedas locais em seu reino, escolheu o thaler, chamando todas as moedas de prata de “Reichsthalers” (“thalers do império”).
“Nos 300 anos seguintes, muitos países ao redor do mundo modelaram seu dinheiro com base no thaler”, disse Urban, olhando para a vista da mina mais antiga em operação contínua da Europa e do castelo Schlick. “Logo, o thaler começou a ter uma vida própria longe daqui.”
Quando os governantes da Europa começaram a remodelar suas moedas com base no thaler, eles também as renomearam em seus próprios idiomas. Na Dinamarca, Noruega e Suécia, o thaler ficou conhecido como o “daler”. Na Islândia, foi o “dalur”. A Itália tinha o “tallero”, que não deve ser confundido com o “talar” (Polônia), o “tàliro” (Grécia) ou o “tallér” (Hungria). Na França, era “jocandale” e “em pouco tempo havia cerca de 1.500 imitações circulando no Sacro Império Romano”, escreve Jason Goodwin em seu livro Greenback: The Almighty Dollar and the Invention of America (Greenback: O Todo-Poderoso Dólar e a Invenção da América, em tradução livre).
O thaler logo se espalhou para a África, onde foi usado na Etiópia, Quênia, Moçambique e Tanzânia até os anos 1940 — e em grande parte da Península Arábica e na Índia, onde ainda estava em circulação no século 20. A moeda oficial da Eslovênia era o “tolar” até 2007. O dinheiro em Samoa ainda é chamado de “tālā”. Hoje, as moedas da Romênia (“leu”), Bulgária (“lev”) e Moldávia (“leu”) têm o leão estampado no primeiro thaler há 500 anos na origem de seus nomes.
Mas foi o leeuwendaler holandês (“dólar do leão”, ou “daler”, abreviado — pronunciado quase de forma idêntica ao “dólar” inglês) que deu o nome à moeda americana. Depois de chegarem a Nova Amsterdã no século 17 com colonos holandeses, os dalers se espalharam rapidamente pelas Treze Colônias, e colonos de língua inglesa começaram a chamar todas as moedas de prata com o mesmo peso assim. O dólar se tornou a moeda oficial dos EUA em 1792 e, desde então, o dólar inspirado no thaler continuou seu avanço por todo o mundo, até lugares como Austrália, Namíbia, Cingapura e Fiji.
No entanto, quando Urban e Ochec me levaram para fora da casa da moeda e passamos por uma cerca de arame farpado e uma torre de vigia militar, entendi que as minas de Jáchymov também têm motivo muito mais sombrio para a fama.
Quando as reservas de prata da cidade diminuíram, os mineiros começaram a encontrar uma misteriosa substância negra que levou a uma incidência alarmante de doenças pulmonares fatais. Eles chamaram o mineral de uraninita de “Pechblende” (“pech” significa “má sorte” em alemão). Enquanto vasculhava as minas da cidade em 1898, uma física chamada Marie Curie identificou que o mesmo minério que havia produzido os primeiros dólares continha dois novos elementos radioativos: rádio e polônio.
A descoberta desfigurou as mãos de Curie, acabou matando-a e a levou a se tornar a primeira mulher a ganhar um Prêmio Nobel. Mas também preparou o cenário para o improvável segundo ato da cidade: as mesmas minas que cunharam a moeda mais importante do mundo agora impulsionariam a corrida às armas nucleares.
Nas décadas seguintes, as minas de prata reabertas da cidade se tornaram a principal fonte de rádio do mundo. Os nazistas testaram um reator nuclear aqui. O “pai da bomba atômica”, J. Robert Oppenheimer, escreveu sua tese sobre os poços ricos em urânio de Joachimsthal. E depois que a Tchecoslováquia recuperou Joachimsthal da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial — renomeando-a Jáchymov e expulsando a população de língua alemã que viveu aqui por séculos com colonos tchecos — o governo assinou um tratado secreto com Joseph Stalin que transformou a cidade em um campo de concentração russo.
“Isso começou um período muito duro da nossa história”, disse Urban, percorrendo os bosques ao longo da recém-aberta trilha de 8,5 km, chamada O Inferno de Jáchymov, que desce o vale, desde o centro de mineração de prata até o campo de concentração soviético. “Antes da guerra, as pessoas que moravam aqui eram muito orgulhosas de criar o dólar. Mas quando a população mudou, essa memória foi perdida e as minas foram exploradas para ajudar a Rússia a criar sua bomba atômica.”
Depois que a bomba atômica de Oppenheimer terminou efetivamente a Segunda Guerra Mundial, cerca de 50.000 prisioneiros políticos soviéticos foram enviados para Jáchymov, entre 1949 e 1964, para cavar e carregar urânio para alimentar o arsenal atômico da URSS. Isso quer dizer que dois dos símbolos mais fortes de poder no mundo moderno, o dólar e as armas nucleares, provêm desta pitoresca cidade mineira nas colinas da Boêmia.
Hoje, Jáchymov ainda está em disputa com seu passado tumultuado. As vastas várzeas que antes marcavam o vale começam a ser engolidas por árvores sempre verdes. As fileiras de casas do século 19, construídas com níveis tóxicos de resíduos de urânio, estão sendo lentamente destruídas e restauradas. E a última mina em operação de Jáchymov, Svornost, que forneceu prata para os primeiros dólares, agora bombeia água radioativa para um trio de resorts luxuosos que anunciam “terapia com água de radônio “.
Ainda não há sinais em Jáchymov de que a cidade reivindique sua legítima posição como o berço do dólar. Mas se você for ao museu da Casa da Moeda da cidade e pedir aos funcionários que lhe mostrem o que há de novo, eles apontarão orgulhosamente para trás de uma mesa e mostrarão uma pequena moldura com a carinha de George Washington.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
https://www.google.com/amp/s/www.bbc.com/portuguese/amp/vert-tra-51041776
Att
Diretoria de Comunicação do SNM